Heidegger e a influência do cristianismo - Entrevista com Emmanuel Carneiro Leão

12/01/2012 01:20

 

“Sem o cristianismo, na sua origem e proveniência cristã, não se compreende o pensamento de Heidegger”, pondera o Prof. Dr. Emmanuel Carneiro Leão, em entrevista por telefone à IHU On-Line, refletindo a influência do cristianismo em Heidegger e vice-versa. Carneiro Leão menciona também a presença das idéias heideggerianas em Bultmann, Bruckner, Lackner e Rahner e conta algumas de suas lembranças como aluno de um dos filósofos mais discutidos e estudados da atualidade.

Doutor pela Universidade de Roma, Itália, e licenciado em Filosofia pela Universidade de Friburgo, Alemanha, onde foi aluno de Heidegger, Carneiro Leão regressou ao Brasil em meados da década de 1960. Desde então, dedica-se ao magistério na condição de professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na qual leciona até hoje. É um dos principais divulgadores do pensamento heideggeriano no Brasil, tendo traduzido para o português alguns livros do filósofo alemão. É autor de, entre outros, do livro Aprendendo a pensar.  Petrópolis: Vozes, 1991. Confira o que o professor pensa sobre o assunto.

IHU On-Line – Quais são suas principais lembranças como aluno de Heidegger?

Emmanuel Carneiro Leão – Minha primeira lembrança é que a atividade de ensino e acadêmica de Heidegger para com seus alunos, com os estudantes, aqueles que escutavam suas palestras, era de um cuidado todo especial. Era um professor com grande atenção para as dificuldades e os problemas dos seus alunos. A segunda grande lembrança e impressão que tenho é que a importância do ensino de Heidegger era promover a capacidade de pensamento dos alunos. Ele não queria ensinar respostas, problemas, perguntas, doutrinas, mas desenvolvia a capacidade própria de pensar de cada aluno, porque a posição que ele passava era que todo o homem tem uma contribuição a dar à vida do pensamento, de maneiras diferentes, com graus diferentes, com qualidade diferente, deixando transparecer que essa contribuição é fundamental para o desenvolvimento da capacidade de pensar de todos.


IHU On-Line – Qual é a grande contribuição da filosofia de Heidegger?

Emmanuel Carneiro Leão – A principal contribuição da obra de Heidegger e o grande mérito é promover esse aprofundamento do pensamento. Pensar não é ficar no nível das relações já dadas, encontradas, mas aprofundar, a partir do que é dado, até a proveniência, a origem, a fonte de onde elas são oriundas.

 

IHU On-Line – Quais são as principais diferenças entre a fenomenologia de Heidegger e a de Husserl?

Emmanuel Carneiro Leão – Podemos dizer que a fenomenologia de Husserl[1] se constrói por meio da intencionalidade da consciência. Isso significa que há uma diferença entre fenômeno e fenomenologia e o que faz a intermediação entre essa diferença é a intencionalidade dessa consciência. Sem consciência, não há fenomenologia, para Husserl. Para Heidegger, já não é dessa forma. Ele acredita que a fenomenologia é o próprio fenômeno. É por causa da fenomenologia do fenômeno que há consciência e intencionalidade. O Dasein, a presença, o modo de ser do homem, não é intermediário entre o fenômeno e a fenomenologia, mas é o lugar onde o fenômeno mostra que ele já é a fenomenologia.


IHU On-Line – Como Heidegger dialoga com a tradição filosófica? Quais são suas principais influências e quais são os rompimentos que propõe?

Emmanuel Carneiro Leão – Heidegger tem uma formação religiosa, cristã, escolástica e, pela escolástica, ele encontra a filosofia grega. Como a filosofia grega, mediada pela escolástica é a filosofia clássica, o que significa Platão[2] e Aristóteles[3], Heidegger procura suas fontes, de onde provêm esses pensadores. Por isso, a principal influência para o pensamento pré-socrático. Para se compreender o pensamento clássico é indispensável ter uma experiência do que constitui a contribuição dos pré-socráticos. Com essa recuperação dos pré-socráticos, que é uma tradição alemã desde Nietzsche, sobretudo, mas também de Hegel[4], embora este esteja mais ao lado de Aristóteles, o que leva a um movimento não de retorno e recuperação das fontes da cultura, da história, do pensamento, da ciência, da arte. Isso é a grande influência que sofre o pensamento de Heidegger, um pensamento cuja originalidade é a sua origem.

 

IHU On-Line – Em quais aspectos Heidegger influencia o desconstrutivismo e por quê?

Emmanuel Carneiro Leão – Sua influência se dá porque, para se chegar a essa fonte de originariedade do pensamento pré-socrático, há uma necessidade de desvincular-se, desvencilhar-se das respostas já dadas, dos padrões de pensamento e conhecimento já estabelecidos até aqui. Então é preciso se desconstruir o que se constitui a tradição do pensamento, do conhecimento e da arte para poder abrir caminho e libertar a experiência para o originário.


IHU On-Line – De que maneira podemos compreender a afirmação do filósofo de que "chegamos muito tarde para os deuses e muito cedo para o ser"?

Emmanuel Carneiro Leão – A nossa tradição entende a realidade como sendo o resultado não de uma atividade de sentido ou de criação, de um princípio absoluto. Com a modernidade não temos mais essa consciência e essa necessidade, por isso, somos modernos à medida que perdemos essa necessidade. Isso significa que chegamos tarde para os deuses, no entanto, com a modernidade, para conseguir-se isso houve uma mudança nos padrões de relacionamento do homem europeu ocidental, que é a respeito de quem estamos falando. Essa mudança aconteceu porque o homem de agora não quer mais receber, como o homem religioso de antes, os parâmetros e os padrões e princípios de como ele tem que viver. Ele quer, ele mesmo, assumir a construção de sua cultura, sua sociedade, sua vida, seu pensamento, seu conhecimento. O homem moderno é aquele que quer transformar a realidade e não apenas aceitá-la como ela é. A perda dessa perspectiva de aceitação leva consigo também uma experiência de criação, o que significa que, para sermos criadores, não temos que nos deixar sufocar pela forma de conhecimento transformadora da realidade. Por isso, chegamos cedo demais para essa experiência de doação criadora do real.


IHU On-Line – Há em Heidegger influências do cristianismo? E no cristianismo vieses heideggerianos?

Emmanuel Carneiro Leão – Sim, sem dúvida há influências recíprocas. Heidegger queria fazer curso de teologia cristã. Toda a atividade de leitura e interpretação da realidade que Heidegger propõe é resultado do que ele aprendeu da interpretação e na leitura da chamada hermenêutica bíblica. Sem o cristianismo, na sua origem e proveniência cristã, não se compreende o pensamento de Heidegger. No cristianismo católico e no evangélico, além de várias outras orientações, a influência de Heidegger foi fundamental nesse século. As chamadas correntes evangélicas da teologia dialética, teologia da morte de Deus, exegética, todas elas tem grande presença e influência heideggerianas. Em Bultmann[5], isso também pode ser notado, assim como em Bruckner, Lackner e Rahner[6]. Esses pensadores querem ler tanto a Bíblia como a tradição cristã sob a perspectiva do pensamento de interpretação de Heidegger.


IHU On-Line – Como o senhor avalia as relações entre Heidegger e o advento do nazismo.?

Emmanuel Carneiro Leão - Heidegger foi reitor da Universidade de Friburgo no período nazista. Sem dúvida, ele achava, inicialmente, que o movimento do Partido Nacional Socialista trazia uma resposta para a situação de crise em que se encontrava a Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial. No entanto, a seguir, ele se convenceu de que estava enganado, de que o nazismo não trazia nenhuma proposta de libertação, de promoção para a Alemanha, pelo contrário, trouxe a destruição. Entretanto, isso só foi perceptível com o tempo. Inicialmente, como todos os alemães que estavam em crise depois da Primeira Guerra Mundial, Heidegger viu nesse movimento político de restauração uma saída, porém a saída que o nazismo trouxe foi aprofundar a desgraça.


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[1] Edmund Husserl (1859-1938): filósofo alemão, principal representante do movimento fenomenológico. Marx e Nietzsche, até então ignorados, influenciaram profundamente Husserl, que era um crítico do idealismo kantiano. Husserl apresenta como idéia fundamental de seu antipsicologismo a “intencionalidade da consciência”, desenvolvendo conceitos como o da intuição eidética e epoché. Pragmático, Husserl teve como discípulos Martin Heidegger, Sartre e outros. (Nota da IHU On-Line)

[2] Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Criador de sistemas filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das Idéias e a Dialética. Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A República e o Fédon. (Nota da IHU On-Line)

[3] Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. C.): filósofo grego, um dos maiores pensadores de todos os tempos. Suas reflexões filosóficas — por um lado originais e por outro reformuladoras da tradição grega — acabaram por configurar um modo de pensar que se estenderia por séculos. Prestou inigualáveis contribuições para o pensamento humano, destacando-se: ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia, história natural e outras áreas de conhecimento. É considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)

[4] Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão. Foi um dos pensadores mais influentes dos tempos recentes. Como Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, Hegel tentou desenvolver um sistema filosófico no qual estivessem integradas todas as contribuições de seus principais predecessores. Sua primeira obra, A fenomenologia do espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos da Europa continental no séc. XX. Nesse livro, Hegel considerava uma variedade tão grande de concepções quanto os diversos estados da mente, e as encarava como estágios no desenvolvimento do espírito em direção a uma maior maturidade. Sua segunda obra, A Ciência da Lógica, tenta fazer uma análise sistemática dos conceitos. Sua Enciclopédia das ciências filosóficas contém todo o seu sistema de uma forma condensada. O último livro de Hegel foi A filosofia do direito. Depois de sua morte, seus alunos publicaram suas conferências sobre filosofia da história, da religião e da arte, e sobre história da filosofia, usando principalmente suas anotações. (Nota da IHU On-Line)

 

[5] Rudolf Karl Bultmann (1884-1976): teólogo luterano alemão nascido em Wiefelstede, Oldenburg, que propôs uma interpretação do Novo Testamento da Bíblia apoiada em conceitos de uma filosofia existencialista. Iniciou como professor sobre sua especialidade, o Novo Testamento (1916), em Breslau, Giessen e Marburg. Nessa cidade, tomou contato com Martin Heidegger e a filosofia existencialista, que influenciou seu pensamento posterior. Morreu em Marburg, então Alemanha Ocidental. Seu primeiro livro foi Jesus (1926), e sua mais famosa obra foi Das Evangelium des Johannes (1941). Na edição 114, de 6 de setembro de 2004, publicamos na editoria Teologia Pública um debate sobre a obra Teologia do Novo Testamento, com a participação de Nélio Schneider e Johan Konings. (Nota da IHU On-Line)

[6] Karl Rahner (1904-2004): importante teólogo católico do século XX, ingressou na Companhia de Jesus em 1922. Doutorou-se em Filosofia e em Teologia. Foi perito do Concílio Vaticano II e professor na Universidade de Münster. A sua obra teológica compõe-se de mais de 4 mil títulos. Suas obras principias são: Geist in Welt (O Espírito no mundo), 1939, Hörer des Wortes (Ouvinte da Palavra), 1941, Schrifften zur Theologie (Escritos de Teologia), 16 volumes escritos entre 1954 e 1984, Grundkurs des Glaubens (Curso Fundamental da Fé), 1976. Em 2004, celebramos seu centenário de nascimento. A Unisinos dedicou à sua memória o Simpósio Internacional O Lugar da Teologia na Universidade do século XXI, realizado de 24 a 27 de maio daquele ano. A IHU On-Line n.º 90, de 1º de março de 2004, publicou um artigo de Rosino Gibellini sobre Rahner; e a n.º 94, de 29 de março de 2004, publicou uma entrevista de J. Moltmann, analisando o pensamento de Rahner. No dia 28 de abril de 2004, no evento Abrindo o Livro, Érico Hammes, teólogo e professor da PUCRS, apresentou o livro Curso Fundamental da Fé, uma das principais obras de Karl Rahner. A entrevista com o prof. Érico Hammes pode ser conferida na IHU On-Line n.º 98, de 26 de abril de 2004. Ainda sobre Rahner, publicamos uma entrevista com H. Vorgrimler no IHU On-Line n.º 97, de 19 de abril de 2004, sob o título Karl Rahner: teólogo do Concílio Vaticano nascido há 100 anos. A edição número 102, da IHU On-Line, de 24 de maio de 2004, dedicou a matéria de capa à memória do centenário de nascimento de Karl Rahner. Os Cadernos Teologia Pública publicaram o artigo Conceito e Missão da Teologia em Karl Rahner, de autoria do Prof. Dr. Érico João Hammes. (Nota da IHU On-Line)

Fonte: https://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7256&cod_canal=41