O público e o privado - Parte I, II e III - Por Thiago Calçado

11/12/2011 19:55

PARTE I

   
Vivemos a explosão de privado.

Tudo bem, ele também foi inventado.
O espaço privado é uma criação da falida modernidade.
Até o séc. XVIII, o mundo era público:
Dormitórios, mictórios, mesas de jantar,
Igrejas, tronos e privadas.
O rei, o papa e as bundas eram seres partilhados.
Lembro-me de uma visita a uma construção medieval.
Nas casas de pedras, defecava-se coletivamente.
Um ao lado do outro. Impávidos.
O rei era o corpo do Estado.
O papa era o Uno desdobrado em mitras e báculos.
Mas veio o ser pensantes.
Cogitare =Essere.
O pensamento exigiu um quarto só pra si.
Um dormitório solitário do Ser.
Criou-se a ciência, a razão e o monólogo fundante.
As privadas se tornaram privadas 
Agora, cada um poderia cagar sozinho,
E ler jornais, gibis ou revistas velhas, 
Sem precisar olhar proa lados.
O privado se fez carne e habitou entre nós.
E o público virou teoria de professor idealista.
E paredes, cortinas e divisórias                                                                                                                                                                        

Cercaram o Ser em suas mazelas.
O quarto da criança, o closet, a sacristia.
Fronteiras tristes do latifúndio humano.

PARTE II

A modernidade inventou o público.
Mas, no seu descuido, abortou o privado.
As paredes e as cortinas são uma criação do cógito.
Separo ergo sum.
O espaço do escondimento.
O lugar do segredo misterioso de si.
O meu eu se tornou uma propriedade.
O meu silêncio tem preço.
Pague-me e eu lhe mostro.
Desde então, existir-se se transformou em assunto de feira livre.
Livre comércio do Ser.
As privadas foram enclausuradas sob tímidas portinhas.
E trincos e perfumes e descargas,
Fecharam, maquiaram e expulsaram nossos dejetos,
Pra bem longe dos olhares alheios.
O defecar se tornou uma constituição do indivíduo.
Indivisível.
Sentado em seu trono, cada ser cagante se tornou rei.
Ele tinha um espaço sagrado, dele, unicamente dele.
E mais...
As igrejas construiram capelas em separado para o Deus-Hóstia.
Os padres cobriram-se de preto e pano para esconder-se.
E as enormes catedrais cederam espaço a lugares claros,
Onde a escuridão se escondeu no mistério tenebroso de si.
Rezar em público: ofensa ao Estado Laico!
Beijar em público: ofensa à moral.
Fazer cocô em latrinas públicas: cúmulo da imundície.
O privado da consciência é uma questão de higiene.
No íntimo de mim, eu sou limpo.
O meu universo interior me bastava.
Eu continha em minha sacristia o universo.
Lançando meus resíduos, eu era único e Universal.
O segredo se tornou vergonha.
E Deus se tornara um passarinho em uma gaiola...
Cantaria quando eu quisesse.
 

PARTE III (FINAL)

Adveio uma nova era.
Tempos de extrapolação do privado.
O que estava sob cortinas e paredes
Agora emerge sob todos os olhares
Gratuitamente, desmesuradamente.
O interesse pelo alheio não tem medidas. Nem preço.
O imenso esforço da modernidade em cobrir com um véu o interior
Agora se desfaz, liquidamente, sob olhos devorantes.
As vidas todas sob os signos dos outros vedores.
Não há espaço privado que não possa (e deva) ser visto pelo outro.
Todos andam me devorando apenas existindo.
Ex-istir = ser perpassado pelo outro.
O público se tornou publicidade.
A confissão de si, marketing.
O meu coração, outdoor colorido.
Como que num piscar de olhos,
Todas as fossas do mundo pipocaram como geiseres.
Jorraram os dejetos entupidores de gerações passadas.
O espaço se tornou a tela pintada de restos explodidos.
O que se fazia na privada,
Agora precisava ser exposto.
Sob a curadoria do virtual,
Os coniformes feco-cogitais do Ser se tornaram uma galeria.
Todos agora pincelam um pouco de suas mazelas por aí.
Facebooks, blogs, twitters, etc, etc, etc,
O inconfessionável encontrou seu espaço de necessidades fisiológicas.
Bananeiras high-techs.
O que o gato enterra não cabe mais na areia.
Tornamo-nos reféns felizes de um saber-alheio que nos incita.
Confesso-me, logo existo.
Vida atravessada. 
A palavra íntimo tem dentro dela o timeo grego.
Honra, valor oculto.
Uma honra, pra ser honrada, tem que ser vista.
É próprio da intimidade ser penetrada.
É próprio dos limites inventados pela modernidade para o privado,
O desejo astucioso de se abrir como uma couve-flor.
Nem o Deus-Revelado-Oculto escapou.
O religioso invadiu espaços inabituais,
Mordeu a fruta e a serpente ao mesmo tempo.
Não há mistério que subsista à fome de ver!
Telepatia delirante. 
Eu mesmo, no instante em que escrevo essas linhas purgantes,
Exponho meus intestinos pra ser visto.
Comentado, citado, copiado e criticado.
Ninguém mais suporta o silêncio eterno dos espaços infinitos de ser só "si".
O privado vagueia pelos ares, redes, teias, universos.
Tenho medo.
Fazer o quê! Tenho!
Temo pessoas (inclusive eu) que não conseguem erigir uma capela ao seu eu.
Temo verdades que não se escondem.
Temo intimidades que perderam o encanto mágico instigante.
Temo os mistérios que, de tanto obscuros, se revelaram sem pudor,
E vestiram camisas listradas para dançar no Bola-Preta até o Sol raiar.
Guardar um tiquinho de mistério é salvar-se.
Talvez, hoje, calar seja o maior discurso.
E escrever, tentativas vãs de continuar existindo.
Nos julgamentos públicos,
O Deus-Palavra simplesmente calou.
E não abriu a boca.

Thiago Calçado é professor  no curso de Filosofia, no Centro Universitário São Camilo  e Padre em exercício. https://thiago78brasil.blogspot.com